segunda-feira, 27 de abril de 2015

Conectados


Foi numa segunda-feira distante que aconteceu pela primeira vez. Ela pensou em adiantar o café no que ele já tinha a água fervendo na panela. Achou bonito. Eles agora completavam as frases um do outro. Em outros momentos repetiam em uníssonos.

Começaram a encadear as ideias de maneira parecida. Tinham uma admiração contida porque é fácil admirar o que é espelho. Parecia uma benção do auge da sintonia dos relacionamentos. Ela compreendia os segredos mais velados. Até aqueles que em segredo preferia não ter percebido.

A ligação era tão forte que começaram a desconfiar de algum misticismo em tudo aquilo. Mas alguém comentou que era algo pra poucos. Que só os casais mais elevados chegavam ao nível da comunicação com um olhar distante, um toque no nariz e a premonição velada.

Depois que a graça da simultaneidade passou e o que era raro virou rotina faziam menos barulho. Poupavam-se a voz, já era sabido. O próximo capítulo, o próximo gesto, a mão repousava sobre o ombro.

Experimentaram uma cumplicidade tão intensa que os silêncios da confidência aumentavam os silêncios da distância. Eles de tão conectados que eram tornaram-se displicentes.

Continuavam conectados, mas uma conexão triste. Lenta. Devagar com toda obviedade que se estabeleceu. Conheceram a desgraça que surge das coisas boas apenas para afrontar a ideia comum da benção que é ser compreendido por inteiro.

Permaneceram anos juntos em silêncio absoluto. Devoraram-se por inteiro. 

Repertório do abandono


Desenvolvi alguns padrões de abandono e sempre que possível sigo eles. Se o livro estiver ruim largo ele no meio, se a série desandou e não lembro mais como cheguei ali, abandono, filme então nem se fala, durmo. Não encorajo perder a curiosidade e não realizar nenhum esforço diante do novo ou difícil, mas aprender o momento de ir embora é algo importante na vida.

Desenvolver um repertório de abandono não se aplica apenas a livros ou filmes, mas também a pessoas. Devo soar mesquinha ao escrever isso, mas, pense naquele conhecido que sempre reclama dos seus relacionamentos ou de possuir um dedo podre. O mecanismo do dedo podre é a capacidade de estragar tudo o que se toca (haja pretensão em acreditar que possui tal habilidade) ou o azar de nunca encontrar pessoas legais e sempre ignorar o padrão de escolhas.

Ao contrário do que pode parecer o repertório do abandono não é apenas um tipificador de pessoas e reforço dos estereótipos, ele também é isso, mas é mais que isso. Pode ajudar a fugir de algumas ciladas ao perceber os padrões que se repetem. Os padrões podem não ser regras universais ou regerem o mundo, afinal nem sempre a soma de a mais b indicará o caminho. No entanto, você pode evitar alguns sofrimentos se reparar neles.

Quando Cinquenta tons de cinza ainda ocupava a lista dos mais vendidos lembro de um blog que gostava bastante ter escrito umas das críticas mais ferrenhas que li na internet naquela época sobre o livro. Algum tempo depois entro lá e encontro outra resenha furiosa sobre o segundo livro da série. É isso que tento explicar. Não é necessário ler o segundo livro apenas para reafirmar que ele é ruim. É esperar milagre demais na vida. Melhor assumir o prazer da queixa. É mais honesto.  Abandonar, aliás, é ser honesto consigo.

Abandonar sem conhecer é pobreza, “é julgar saber demais e se interessar pouco”. Não é torcer o nariz frivolamente. É o contrário. É conhecer e saber que não vale a pena. É se conhecer e ir embora. Já sei que é ruim, não quero, não gosto. Repetindo meu meme favorito da atualidade “eu não sou obrigada”.

terça-feira, 14 de abril de 2015

Salvador

Há quase dois anos moro em Salvador e predomina o sentimento de desconhecimento sobre esse lugar. Salvador é difícil de conhecer.

Eu não sei falar sobre os seus problemas óbvios, seu trânsito caótico ou sua fragilidade quando a chuva vem e olha que ela sempre vem. Muito menos sobre sua periferia, porque falta em mim o conhecimento eminente sobre todas essas coisas.

Falta em mim tantas coisas, aliás.

Salvador tem alguma coisa de feia que a faz bonita. Aqui parece que o tempo foi envelhecendo os prédios e eles ficaram bonitos apenas por estarem feios.

Outra coisa difícil pra alguém que cresceu no interior lá perto da caatinga baiana é a presença do mar. O mar é algo ainda muito misterioso. Ficava sempre impressionada em como as pessoas existem perto do mar e apenas passam por ele. Sempre achei que ele foi feito pra ser visto. Não sei conviver silenciosamente com ele.

Ainda acho esquisitíssimos diálogos como “vamos pela orla ou pela Bonocô?”.

Bonocô também foi outra coisa que causou grande estranhamento. Não a via, mas o nome ou o som dela. Essa sonoridade malandra faz com você duvide da urbanidade daqui. Salvador nunca vai ser urbana.

Outro dia fui com meu namorado ao Pelourinho e não sei como parámos em um estacionamento e logo depois já saímos dentro do Pelourinho. Naquele dia percebi que nunca vou me acostumar com essa cidade. Estávamos numa rua asfaltada e “de repente plim” aquele chão antigo de pedras tortas.

É o plim que torna Salvador difícil. Esse gatilho rápido que não consigo acompanhar. Vejo um prédio de arquitetura moderna sofrível e outro de azulejo colonial caindo aos pedaços. Salvador talvez exista dessa simbiose entre o novo e o velho, o urbano e o arcaico, o feio e o bonito. Eu apenas devo aceitar e sentar sempre na janela do lado pro mar no ônibus. 

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Fraude

O sentimento de fraude sempre me acompanhou. No ensino médio era certeza. Era fraude. Pronto. Ninguém te leva a sério mesmo. Seu talento para exatas é inexistente e logo percebem que você é “uma pessoa de humanas”. Seja lá o que ser alguém de humanas signifique.

Mas aí por alguma razão misteriosa você passa no vestibular, numa universidade pública e tudo. Você continua fraude, mas com nível superior. Você agora é de fato alguém de humanas, vai ter uma profissão sofrida que nunca pagará um salário decente. Nas reuniões de família, aniversário, natal, páscoa, um parente semi-desconhecido vai puxar assunto sobre a faculdade.

Essas conversas são piores que aquelas em sala de espera de médico, ou elevador, essas obrigatórias que servem apenas pra preencher o vazio, sobre o tempo ou a demora. Mas é natal e você sorri e se entope de comida ou é pascoa e você sorri e se entope de comida também.

Quem fez um curso como o meu, jornalismo, corre o risco de ouvir sempre a mesma piada cretina sobre ser o próximo William Bonner ou “te vejo na globo”. Penso como as pessoas de rádio e tv devem sofrer. E museologia? E relações internacionais? E turismo gente??

Pode piorar. Acredite. Você pode começar um mestrado. Seus semi-desconhecidos agora não sabem mais o que você faz da vida. Aliás, a pergunta que fica é: você faz alguma coisa da vida? Quando você para de estudar mesmo? O que faz alguém com mestrado? Explicar que você faz um mestrado em “filosofia deleuziana com enfoque em Hegel sei lá o que” só aumenta o sentimento de fraude. Talvez passe quando começar um doutorado. Profissões que envolvem a palavra doutor parecem ser algo bom nesse país. São?